Noturnos como somos
Escrito numa noite de verão que me lembra que não tenho razão de estar miserávelContemplar o modo em que ele leva o cigarro aos lábios
O modo que dois dedos o seguram tremulamente
E as bochechas esvaziam quando ele enche a boca de fumo venenoso e quente
Abre os olhos manso como um cordeiro, olhos sábios.
Há uma ruga entre as sobrancelhas d’Ele
Chama-se a Linguagem do Caos
À combinação dos olhos intensos e da ruga franzida na sua pele
Mas é a Linguagem do Caos que na sua direção me impele.
Caos manifesta-se nos olhos
Olhos esses que estão agora fechados,
Mas mesmo sem ele ver
Os dados estão lançados.
Quando cerrados, parecem de um predador
Ou os de uma fera concentrada.
Mas quando abertos, já parecem
De uma presa domesticada.
São de tons pretos e manchados
Como que enegrecidos pelo fumo
Que age como uma névoa,
Escondendo olhos tristes e cansados
Do Caos são vassalos, e estão saturados.
Mas mesmo na imensidade da sua escuridão melancólica e melodiosa
Estão meio vivos, se bem que, talvez “meio” seja muito
Têm uma fração de vida
Pois naqueles olhos, jaz a morte e o tumulto.
A foto não é velha,
Tem apenas um ano.
Era de quando ele ainda tinha o vício da nicotina
E todas as virtudes de alguém insano.
Dispensara o tabaco quando algo em si irrompera
A voz de mel substituída por uma mais rouca e gutural
E a pele de algodão por uma mais áspera
Soubera aí que não podia sucumbir a um desejo tão primitivo,
Como aquele de procurar a satisfação instantânea
Afinal, não era nenhum animal
Nem uma fera.
Sempre me surpreendeu a velocidade com que ele largava os vícios
Como se nada o afetasse
Nem os deleites, nem os perigos.
Dos dois últimos, não sei onde me identifico
Devia ter sabido que não era exceção
Pois foi tão fácil descartar-me,
Como atirar uma beata para o chão.
Joana Ferreira
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